“Matar é como tomar sorvete: quando acaba o primeiro, dá vontade de tomar mais, e a coisa não para nunca".
Domingo de 1986. Mais precisamente no dia 7 de dezembro, o decorador José Liberato estreou com seu algoz uma peça sangrenta. O ato clímax culminava com seu corpo nu e frio jogado no chão de seu próprio apartamento, amordaçado e com as mãos e pernas amarradas. O dantesco espetáculo trata-se de um assassinato operado pelo michê Fortunato Botton Neto, cujo papel principal no seu teatro particular renderia, ao menos, mais seis vítimas.
Antes de gozar a alcunha que ganhara no auge de sua fama, Fortunato praticou uma série de homicídios contra homossexuais no final de 1986 a abril de 1987, até onde ia as provas concretas da perícia policial. Especula-se que ele tenha matado ao todo 13 pessoas, mas isso tem menor importância. O que mais chocou na época foi a forma como ele as matava.
Zezinho, como Liberato era chamado por sua família, era um senhor negro de 66 anos, morreu asfixiado. A forma do assassinato se repetiu depois com os alvos seguintes de Fortunato. No caso de Zezinho, seu corpo foi achado com um lençol branco entre as pernas e uma longa echarpe amarrada na boca. Suas mãos estavam enrijecidas e amarradas na altura do peito com um fio de eletricidade. No pescoço, uma tira de náilon, com fivelas, pressionava a região.
O enforcamento e os membros atados se tornaram marca registrada de Fortunato. O seu modus operandi variava um pouco dependendo da circunstância, mas, em geral, consistia em asfixiar a vítima, amarrar os membros e deixar o corpo dela despido e estendido na cama, com a roupa de cama o cobrindo.
As cenas armadas por Botton Neto fazem parte de seu espetáculo, o que mais tarde ajudaria os policiais concluírem sua autoria nos crimes. Os rastros que ele deixava não era por mera distração. Para o psiquiatra Guido Palomba, Fortunato segue um padrão típico de serial killers, que costumam deixar sua marca em suas vítimas, repetindo os mesmos procedimentos.
Não bastasse amarrar as vítimas e asfixiá-las, Fortunato demonstrava outros requintes de sadismo. Em um dos seus crimes mais conhecidos, ele sufocou o psiquiatra Antônio Carlos Di Giacomo com as meias deste. Socou as meias na boca do psiquiatra, até elas atingirem seu esôfago. Ao ver duas meias pendendo para fora da boca de Giacomo, o assassino não se satisfez até finalizar de vez seu trabalho. Usou duas cordas de meia e a perna de uma calça jeans no pescoço do médico para assegurar que o serviço estava bem feito. Nessa época, já guardava a experiência do homicídio contra Zezinho. Com Giacomo, sua segunda vítima, amadurecia seu modus operandi.
O padrão das vítimas
Outro aspecto chamativo, além da forma como matava, era o fato de que todas as suas vítimas eram homossexuais. O contexto da época parecia evidenciar mais um criminoso homofóbico, escondido sob a máscara da prostituição. A proliferação de pessoas infectadas por aids só piorava a situação, visto que muitos culpavam os homossexuais pela transmissão da doença, chamada no início como “espécie de câncer estranho de gays”. A tese de que os assassinatos de Fortunato era movida por ódio a este grupo veio corroborada quando ele afirmou, já preso, que se saísse continuaria matando homossexuais, “pois são uma raça que não merece viver’’.
A sua frase, contudo, revelaria mais tarde ser fruto de um homem que transitava entre a dissimulação e uma mente doentia. Fortunato, ou melhor, Pilo, um dos seus nomes paralelos, manifestara sua homossexualidade ainda entre os 9 e 10 anos, apesar de ter sido criado por uma mãe religiosa e um pai trabalhador conservador. Gostava muito de ter relação sexual com o mesmo sexo, não à toa vivia de vender serviços sexuais para homens desde a adolescência. Rapaz forte, bonito e de traços viris, seu tipo físico atraía diferentes fregueses.
Ao final dos anos 80, Pilo já passara dos 25 anos. Depois dessa idade era difícil conquistar clientes, em geral homens mais velhos que procuravam jovens para satisfazê-los com sexo descompromissado. Apesar desse empecilho, o michê conseguia ainda atrair fregueses pelo seu jeito masculino meio rudo mesclado com alguns modos delicados. Muitos de seus clientes eram abastados, tanto que na lista de suas vítimas incluem psiquiatra, diretor teatral, decorador e executivo.
Fortunato aproveitava as oportunidades em que era convidado para as casas dos clientes e roubava dinheiro, utensílios, roupas e outros objetos. O apartamento do diretor teatral Manoel Iraldo Paiva, o Maneco, que ficava no Edifício Malvina, na rua da Consolação, serviu de mais um cenário de homicídio seguido de furto. Lá, o michê matou Maneco e, antes de sair do prédio, levou consigo um televisor, um aparelho de videocassete Panasonic, um walkman Mitsubishi, um rádio relógio National, uma máquina de escrever portátil Facit, uma bolsa de viagem Gucci, um relógio de pulseira metálica Mondaine, um talão de cheques do Bradesco, fora várias peças de roupas. Ele vendia os objetos furtados em troca de dinheiro.
Os antecedentes criminais de Botton Neto começaram bem antes se tornar um serial killer. Ele já realizava pequenos crimes antes de matar José Liberato. Somando isso ao fato de que Fortunato chegou a viver na rua ainda aos 10 anos, até mesmo foi recolhido para a antiga Febem por se encontrar em estado de abandono, poder-se-ia concluir que sua vida marginal evoluiu até o ponto de assassinar diferentes pessoas sem guardar remorso.
Porém, tal qual a tese da homofobia, o seu passado não é o suficiente para explicar os motivos dos homicídios. Botton vivera na rua porque fugiu de sua casa aos dez anos, ato que se repetiria na adolescência. Ele não sofria maltrato dos pais, o que poderia ter colaborado mais tarde na construção de um monstro. Suas fugas estavam muito mais relacionadas à sua decepção na escola. Sua dificuldade de aprendizado vinha desde bem pequeno; só aprendeu a falar aos cinco anos e entrou na escola aos nove anos, dois anos acima da média das crianças no país. Sem completar os estudos, já adulto precisou se virar de bicos e serviços considerados sujos pela sociedade.
Imagens da reconstituição feita pelo Discovery Channel
Imagens da reconstituição feita pelo Discovery Channel
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Estrelato
A alcunha de Maníaco do Trianom veio quando fora acusado pelos assassinatos dos homossexuais. O destaque que ganhou na mídia o fez deslumbrar sua fama, expondo seu lado perverso como uma estrela de cinema encantada com sua atuação em um filme. Em relato para os policiais e jornalistas, Fortunato descrevia com prazer como procedia em seus homicídios, inclusive acrescentando detalhes que tirava de sua própria cabeça, como provou mais tarde a perícia criminal. No assassinato de Giacomo, o maníaco do Trianom relatou que a mesma faca que usara para atacar o psiquiatra ele a utilizou depois para cortar um queijo que comeu no local do crime.
A frieza e a falta de compaixão pelas vítimas demostradas por Botton Neto foram diagnosticadas por Guido Palomba em sua lauda médica, que o classificou como um típico psicopata, para ser mais preciso, um portador de epilepsia condutopática. De acordo com o psiquiatra, o quadro clínico de Botton aponta um tipo de assassino que independe de seus antecedentes e de qualquer motivação que possa ser explicada racionalmente. A relação que ele tinha com as pessoas era a mesmo que tinha com os lugares onde vivia: nunca mantinha vínculos duradouros em ambos.
O fato de suas vítimas serem homossexuais faz mais sentido por questões circunstanciais. Como trabalhava como michê no parque Trianon e ocasionalmente frequentava a casa de seus clientes, era mais provável que os homicídios ocorressem com homossexuais. Além disso, após assassinar José Liberato, a linha divisória entre matar e não matar sumira totalmente de sua consciência. Visto o quão fácil e prazeroso aquilo podia ser, Fortunato repetiu sua primeira experiência nas outras vítimas.
Para incitá-lo a cometer o crime, não precisava de muito. O michê tinha um temperamento explosivo caso alguém levantasse a voz para ele. Uma breve discussão ou frustrá-lo com um recusa já era o suficiente para começar suas brutalidades. Palomba explica que tal comportamento é comum em psicopatas de personalidade explosiva. “Normalmente o sadismo é uma característica que você encontra com muita frequência nesses explosivos. Eles não têm ressonância de sentimento com a vítima, por isso que eles são sádicos”, comenta.
Esse tipo de criminoso tem completo entendimento de seus crimes, ainda que não compartilhe dos sentimentos que as pessoas normalmente sentem ao matar alguém. Assim agia Fortunato e assim continuaria agindo se a polícia não o tivesse interrompido. Uma vez que começara seu espetáculo mortífero, não pararia mais, não havia mais caminho de volta. Antes de morrer de aids em 1997, no Carandiru, ele deixou claro que, se pudesse, seu teatro continuaria: “Matar é como tomar sorvete: quando acaba o primeiro, dá vontade de tomar mais, e a coisa não para nunca".
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