A história do ex-policial Cirineu Carlos Letang, o único condenado pelo massacre de presos no Carandiru, em 1992, que está na cadeia. Mas ele cumpre pena por outro crime
A VIDA NA PRISÃO
Vizinho de um bairro nobre na Zona Norte de São Paulo e cercado por Mata Atlântica, o Presídio Militar Romão Gomes é o único do Brasil exclusivo para policiais militares. Suas celas, espaçosas e quase nunca lotadas, têm chuveiro quente, armário individual e, em alguns casos, TV de plasma. Os detentos podem optar pelo trabalho em uma horta ou em um apiário, frequentam sessões de cinema e têm à disposição uma biblioteca com mais de 1.000 títulos e uma academia improvisada. A segurança ali é mais flexível. Quem se comporta bem pode evoluir das celas para os alojamentos sem tranca. Do lado de fora, há cercas modestas em vez de muros altos. “Nossa muralha é psicológica”, afirma o tenente-coronel Eli Fraga do Rego, o diretor do presídio. “A tranquilidade daqui não existe em lugar nenhum. Ninguém quer ser expulso ou recapturado e mandado para outro presídio.”
Cela do presídio militar onde está agora (Foto: Edson Lopes Jr./Terra, Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Há três meses, a cela X-3 de uma ala do Romão Gomes passou a ser ocupada por um inquilino especial: Cirineu Carlos Letang, de 50 anos, um ex-soldado das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, tropa de elite da Polícia Militar (PM). Fosse o regimento interno do presídio cumprido rigorosamente, o novato não poderia estar ali. Letang não se enquadra numa exigência do Romão Gomes: a de que todo preso deveria estar vinculado à PM na ocasião em que cometeu o crime pelo qual foi condenado. “Ele é uma exceção à regra”, diz Rego. Recém-transferido do Complexo Penitenciário de Tremembé, a 140 quilômetros de São Paulo, sua permanência na cadeia militar foi autorizada, em caráter extraordinário, pela Justiça.
Letang corria perigo em sua antiga casa. Foi um dos 350 policiais militares que, no dia 2 de outubro de 1992, invadiram a Casa de Detenção, no bairro do Carandiru, em São Paulo, durante uma rebelião. A operação desastrosa terminou com 111 mortos. Ficou conhecida como Massacre do Carandiru e se tornou um dos mais conhecidos casos de violência em presídios do mundo. Sua complexidade jurídica é superlativa. Na Justiça, o Carandiru resultou no maior processo criminal do Brasil. Na madrugada de 10 de dezembro de 2014, Letang foi condenado a 624 anos de cadeia pelo assassinato de 52 presos. Dos policiais acusados pelo massacre, ele foi o último réu a ser julgado – e é o único na prisão.
O soldado da rota
Letang virou policial em 1985. Era um soldado de 28 anos quando, naquela tarde de 1992, recebeu, com outros companheiros da Rota, a convocação para controlar a rebelião de presos no Pavilhão 9 do Carandiru. Por volta das 13h30, uma briga entre dois detentos dera início a um tumulto entre grupos rivais. A situação fugiu ao controle – e a invasão da PM foi autorizada pelo comando da Segurança Pública de São Paulo.
O plano de invasão foi improvisado. Coube à Rota entrar no 2o e 3o andares do pavilhão. A invasão foi descrita como “um estouro de boiada” pelas testemunhas. Nos andares em que estava a Rota, a violência se impôs com mais força. Seus homens dispararam mais de 300 vezes e mataram metade dos 111 presos assassinados no massacre. “Eles nem sequer renderam ou desarmaram alguém. Chegaram atirando”, diz o perito Osvaldo Negrini Neto, um dos primeiros a chegar à cena do massacre.
Posicionados na soleira das celas, os atiradores da Rota metralharam de cima para baixo e da esquerda para a direita. No tribunal, os policiais afirmaram que o local estava escuro e tomado por uma cortina de fumaça. Segundo o relato deles, apenas devolveram os disparos em direção aos clarões que vinham do sentido contrário. “Não houve nenhum disparo por parte dos presos”, diz o promotor Fernando Pereira da Silva, que atuou no julgamento. “Pelo menos 90% dos cadáveres tinham tiros na cabeça. Os policiais sabiam onde estavam atirando.”
A defesa de Letang apresentou recurso contra a condenação. “Não existe uma prova sequer de que o PM X atirou na vítima Y. A decisão foi política, não jurídica”, afirma a advogada Ieda Ribeiro de Souza, há mais de 20 anos responsável pela defesa de todos os ex-integrantes da Rota que participaram do massacre. Letang, apesar da pena de 624 anos, não está preso pelo caso do Carandiru – um de seus recursos ainda não foi julgado. Encontra-se no Romão Gomes para pagar por crimes que lhe conferiram notoriedade na crônica policial paulistana. Letang ficou conhecido como serial killer de travestis.
COLEÇÃO DE CRIMES
O corredor da Casa de Detenção do Carandiru (acima) ficou tomado de sangue. No jornal de 1993, Letang aparecia como suspeito dos três assassinatos que cometeu numa noite
O matador de travestis
Depois do Carandiru, Letang levava o que parecia uma vida ordinária. Casado pela segunda vez, o jovem soldado da Rota morava com a mulher e dois filhos, trabalhava como policial à tarde e, nas horas vagas, fazia bicos de segurança. Na noite de 12 de março de 1993, cinco meses após o massacre, deu os primeiros indícios de que se transformava ao andar pelo lado selvagem de São Paulo.
De folga, Letang perambulou por duas horas na Zona Oeste, uma área de classe média. Dirigia um Fusca bege 1974. Numa área de prostituição, parou o carro, baixou o vidro do passageiro e chamou um travesti que esperava por um cliente. José Wilson da Silva, de 30 anos, conhecido como Valéria, curvou-se até o veículo para combinar o programa. Segundos depois, levou um tiro fatal no rosto. Naquela mesma madrugada, Letang já havia matado outros dois travestis: os irmãos Reginaldo e Jaime Félix da Silva, de 22 e 24 anos, de codinomes Viena e Wilma.
Letang desferiu vários golpes contra o corpo sem vida de Reginaldo. Usou um objeto cortante, arrancou o pênis do cadáver e o colocou na boca da vítima.
Um professor de balé testemunhou um dos crimes. Dois travestis anotaram a placa do Fusca. Letang foi expulso da polícia tempos depois. Em seguida, foi condenado a 44 anos e quatro meses de prisão pelos assassinatos cometidos naquela noite. Ficou 18 anos preso. Na cadeia, Letang se tornou evangélico, fez faculdade de sociologia e trabalhou num escritório de advocacia. Chegou a responder a outros 18 inquéritos. Muitos deles, que envolviam homicídio, foram arquivados por falta de provas. Letang costumava agir sempre da mesma forma. Abordava o travesti e, sem motivo aparente, disparava na direção do rosto.
“Assim como outros assassinos em série, ele tinha uma assinatura própria: um tiro no olho direito”
, diz a criminóloga Ilana Casoy, autora de Serial killers – Made in Brazil.
Letang saiu da cadeia em 16 de março de 2011. Depois de 71 dias, voltou a atacar.
A última vítima
Numa moto Twister vermelha, vestindo calça jeans, jaqueta de couro, pochete e capacete pretos, Letang deixou sua casa no bairro de Imirim, na Zona Norte de São Paulo, na noite de 26 de maio de 2011. Ao chegar à Barra Funda, na Zona Oeste, abordou um travesti que, ocupado, recusou-se a fazer um programa. Próximo dali, numa rua onde funcionam, durante o dia, galpões industriais, Alison Pereira Cabral dos Anjos, ou Camila Close, de 23 anos, fazia ponto. Alison tinha os cabelos pretos esticados por chapinha, silicone nos seios e nas nádegas, a barriga sarada e o nariz corrigido por cirurgia plástica. Morava na casa de uma cafetina das redondezas. Letang estacionou a moto e se encaminhou com Alison para o local dos programas – ao ar livre, entre uma árvore e uma Kombi abandonada. Letang pagou com uma nota de R$ 50. Por se recusar a dar o troco de R$ 10, Alison levou vários tiros. Um deles no olho.
Assim que o assassinato de Alison chegou aos delegados da Polícia Civil, o burburinho tomou conta das rodas de café. Alguns funcionários mais antigos lembraram logo do nome de Letang, mas o descartaram como suspeito. Achavam que ele continuava preso. Um delegado de plantão resolveu fazer uma busca mais detalhada. Descobriu, então, que Letang estava em liberdade. A principal pista da investigação era uma anotação, feita às pressas e no escuro, no dia do crime. Um travesti que presenciou os disparos copiou o que conseguira enxergar da placa da moto do assassino: ECJ 0___.
Na casa de Letang, com um mandado de busca e apreensão em mãos, o delegado do caso soube que ele acabara de vender uma moto com as mesmas características da que fora descrita pela testemunha do crime. A placa se assemelhava: FJG 0540. Letang foi intimado a comparecer na delegacia. Lá, foi colocado dentro da sala de reconhecimento, ao lado de outros três homens com feições semelhantes às dele. Do lado de fora, separados por vidros espelhados, cinco travestis que testemunharam o assassinato foram unânimes em apontar o ex-soldado. “Todos o reconheceram sem titubear”, afirma o promotor José Carlos Cosenzo. Letang negou o crime. Em setembro de 2013, foi condenado a 21 anos e quatro meses de prisão.
“Alison era tudo de delícia na minha vida”, diz Maria de Lourdes Pereira dos Anjos, de 53 anos, sobre o filho morto. A última vez que Maria de Lourdes falou com Alison foi na manhã do dia da morte, por telefone. Com a voz esbaforida, ele contou que estava atrasado para pegar o ônibus que o levaria até o dentista. Prometeu retornar mais tarde. Naquela mesma noite, um amigo de Alison bateu à porta de Maria de Lourdes com a notícia.
Passados quase quatro anos do crime, a mãe ainda coleciona fotos do filho em canecas, camisetas e ampliações gigantes pela casa. Para suportar a perda, criou um mundo de faz de conta onde Alison está vivo e viaja para Roma, Paris ou Londres, para trabalhar. O nome de guerra Camila Close batizou o pizza-bar “Camila Forever”, aberto pela família. No aniversário de Alison, Maria de Lourdes e os outros filhos vão até o cemitério, abrem o porta-malas do carro perto do túmulo e colocam “a Claudinha” (Leitte) no som para tocar. Ao lado da lápide, comemoram a data com champanhe e bolo.
O psicopata
Aos olhos da mulher, dos filhos e de sua advogada, Letang é um marido bom, um pai dedicado e um evangélico disciplinado. Após o último assassinato, a família chegou a fazer um blog – já fora do ar – para combater o que chamava de calúnias. “Ele é absolutamente normal, uma pessoa calma, tranquila e que deveria estar incorporada à sociedade”, diz a advogada Ieda Ribeiro de Souza.
A psicólogos e psiquiatras, Letang relatou ter um pai alcoólatra e uma mãe com quem nunca se entendeu. Na adolescência, segundo ele, costumava ser assediado por mulheres mais velhas. Afirmou ainda ter sofrido abuso aos 17 anos, sem entrar em detalhes. Uma denúncia assinada pelo promotor Eduardo Martines Júnior, apresentada em 1993, diz que Letang manteve relações homossexuais com um travesti portador de HIV. Quando descobriu, segundo a denúncia, decidiu matar outros travestis. “Letang nega os crimes, mas é moralista ao falar dos travestis. Para ele, são pessoas lesivas à sociedade”, afirma o psiquiatra José Ciro de Paula Barreira, do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, que fez um laudo sobre a saúde mental de Letang. Todos os psiquiatras e psicólogos que conversaram com Letang o diagnosticaram como psicopata.
A psicopatia é uma perturbação mental, não uma doença. Os pacientes diagnosticados não têm delírios nem alucinações. Pelo contrário. Compreendem, com a mais absoluta clareza, o mundo real. Letang é descrito por seus interlocutores como inteligente, educado, articulado e frio. Na penitenciária de Tremembé, usou tais habilidades para se proteger. Como ex-PM da Rota, Letang era um alvo natural dos demais presos. Mas Letang conseguiu se colocar a salvo – pelo menos até o ano passado, quando o julgamento do Massacre do Carandiru trouxe o caso de volta à luz. “Ele convenceu os detentos de que sua participação no massacre não foi ativa”, diz o delegado.
Questionado sobre os crimes que lhe são atribuídos, não franze a sobrancelha, não mexe os olhos, não transparece emoção. O único assunto que parece mexer com ele é o Carandiru. Ao falar do massacre, seu olho brilha, diz um delegado. Parece manter alguma espécie de orgulho desse crime.
Algumas fotos do massacre do Carandiru
Tropa de Choque da Polícia Militar paulista entrando no complexo penitenciário do Carandiru. Fotografia: autor desconhecido.
Registro pericial acerca de parte dos mortos do pavilhão 9. Fotografia: Niels Andreas/Folhapress.
Vista panorâmica do completo penitenciário do Carandiru, 1992. Fotografia Folhapress.
Familiares e amigos dos detentos aguardando notícias durante a rebelião. Fotografia Luiz Novaes Folhapress.
O Coronel Ubiratan Guimarães prestando seu depoimento sobre o ocorrido no Pavilhão 9.
Parte dos pavilhões do Carandiru sendo implodidos, 2002. Toda parte do complexo penitenciário masculino foi ao chão.Fotografia Angelo Perosa Pool.
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