De 10 de janeiro ao dia 4 de maio, a Unidade de Pacientes Traumáticos (UPT) do Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, viveu uma rotina macabra: nos dias de plantão do auxiliar de enfermagem Edson Isidoro Guimarães, de 42 anos.Responsável direto pela morte de pelo menos cinco pessoas. Estima-se que o número verdadeiro de suas vítimas, porém, seja superior a 100, o que o transformaria em um dos maiores assassinos em série do Brasil e do mundo.
Métodos
O mais comum era injetar na veia do paciente 10 mililitros de cloreto de potássio. Segundo o secretário Ronaldo Gazolla, o produto é muito usado em hospitais para hidratar doentes. Se ministrado corretamente, não causa mal algum. "Mas, injetado diretamente na veia e nessa quantidade, é letal", explicou o médico-monstro. O segundo método era mais simples: desligar os aparelhos de respiração artificial. Sem oxigênio, o paciente morria rapidamente, Isidoro religava a máquina e só então chamava o médico de plantão.
Por que...
A motivação do auxiliar de enfermagem ia muito além da comiseração: ele recebia de R$ 800 a R$ 1 mil "por serviço". O "serviço" era apenas informar aos agentes funerários de plantão no Salgado Filho a ocorrência da morte para que eles abordassem a família. "Essa é a tabela para pessoas que chegam em estado grave vítimas de acidentes de trânsito. As mortes comuns, eles só pagam de R$ 80 a R$ 100", esclareceu o assassino confesso, que citou o nome de duas funerárias - Novo Rio e Novo Mundo, na periferia da cidade. Um dos proprietários da Novo Rio, Manoel de Souza, nega qualquer ligação com o enfermeiro. "Em 15 anos só enterramos dez pessoas que morreram no Hospital Salgado Filho", diz Souza. "Esse sujeito está louco."
Números.....
De janeiro até o dia 4 de maio, 225 mortes foram registradas na UPT do Salgado Filho. Delas, segundo as contas da Secretaria Municipal de Saúde, 131 ocorreram nos plantões de Isidoro. A polícia trabalha com o número de 153 mortes porque há outras consideradas suspeitas na unidade. Em janeiro, morreram na UPT 32 pacientes, 18 nos plantões de Isidoro. Em abril, das 62 mortes registradas na UPT, 34 caíram nos plantões do auxiliar de enfermagem. Outro exemplo claro surgiu em maio. Nos três primeiros dias do mês, nenhuma morte ocorreu na UPT. O detalhe: Isidoro estava de folga. No dia 4, quando ele voltou ao plantão, morreram cinco. Foi a gota d'água para a denúncia da Secretaria Municipal de Saúde.
Para prender Isidoro, a polícia infiltrou detetives como pacientes no hospital. Uma faxineira contou a um deles que vira o auxiliar de enfermagem dar uma injeção em um paciente que pouco depois viria a falecer. Com a prisão, a polícia encerrou o ciclo de plantões da morte no hospital do Méier.
Prisão e Condenação
Edson Izidoro Guimarães foi preso em 7 de maio de 1999,e acusado de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe; emprego de asfixia e veneno; e mediante recurso que impossibilitou a defesa das vítimas).
Em 17 de fevereiro de 2000, foi condenado a 76 anos de prisão, resultado da soma das quatro penas de 19 anos pelas mortes dos quatro pacientes do Hospital Municipal Salgado Filho. A defesa apelou, e no dia 13 de março de 2001, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão unânime, reformou a sentença por entender que houve crime continuado e não concurso material de crimes. Na ocasião, a Câmara fixou a pena de Edson Izidoro em 31 anos e oito meses de reclusão, permitindo à defesa protesto por novo júri, igualmente aceito por unanimidade.
Entrevista
"Vou falar sem esconder o rosto porque estou tranqüilo", disse Isidoro em entrevista coletiva no auditório da Secretaria de Segurança do Rio. "Eu fiz isso com cinco pacientes porque eles estavam em coma, sofrendo muito. Fiz também para aliviar a agonia das famílias. Eu escolhia o paciente pela gravidade de seu estado de saúde. Quando via que ele não tinha mais meios de sobrevivência, abreviava o sofrimento", explicou."Fazia tudo pela minha vontade, não me arrependo. Pretendia manter segredo, mas descobriram", lamenta.
Entrevista com a revista Veja
"Eu não sou um monstro"
O auxiliar de enfermagem Edson Isidoro Guimarães está encarcerado com mais 31 presos na sede da Polinter, no centro do Rio de Janeiro. "É uma cela tranqüila. Ninguém me olha atravessado", afirma. Na gíria dos policiais, Edson Isidoro está detido numa área da delegacia conhecida como "xadrez de seguro". É o local onde ficam os estupradores e assassinos de crianças, pessoas que em outras celas poderiam ser executadas pelos demais presos. Na quinta-feira, ele conversou com VEJA.
Veja – Quantas pessoas o senhor matou, afinal?
Guimarães – Só falo sobre isso em juízo.
Veja – Como o senhor pretende explicar para seu filho de 10 anos essa série de mortes?
Guimarães – Vou explicar para ele que foi por causa do sofrimento do paciente. Mas, por enquanto, não quero falar.
Veja – Não tem pesadelo pelo que fez?
Guimarães – Estão me crucificando como um monstro, mas eu não sou um monstro. Sei que vou ter de pagar pelo que fiz. Mas pretendo até ser absolvido. Se Deus achar que eu devo pegar cinco anos, tudo bem. Agora, quero me apegar a Deus. Estou inclusive lendo a Bíblia que os colegas da cela me emprestaram. O que fiz foi conseqüência de o hospital não ter condições adequadas para manter um paciente lá. Não matei 130 pessoas.
INJEÇÃO LETAL
Segundo depoimento de funcionários do Hospital Salgado Filho que denunciaram os assassinatos, a desconfiança de que Edson estava ligado com as mortes começou quando o enfermeiro foi transferido para a Unidade de Pacientes Traumáticos. Houve um aumento considerável nos óbitos durante os seus plantões. As vítimas do enfermeiro tinham sempre o mesmo perfil: vítimas de acidente de trânsito em estado grave. Edson Izidoro confirmou que aplicava uma injeção letal nas suas vítimas, contendo potássio em dose elevadíssima. Em uma de suas tentativas contra a vida de um paciente a injeção de potássio aplicada por Edson teve efeito contrário: o paciente tinha déficit da substância no organismo. “Fiquei feliz da vida. Afinal de contas, consegui salvar uma pessoa. Sou um religioso e sei que fiz o que fiz para salvar as pessoas”, afirmou com ironia o enfermeiro, para espanto dos policiais.
Edson ainda é acusado de ter matado muitos pacientes que respiravam com a ajuda de aparelhos, apenas retirando as suas máscaras e esperando o momento certo de avisar às funerárias.
No condomínio onde morava, em Jacarepaguá, o auxiliar de enfermagem era conhecido por ajudar vizinhos doentes, e sua prisão, na época, causou surpresa na vizinhança. Amigos da família que residiam no mesmo conjunto residencial consideravam Edson uma pessoa calma e prestativa. “Ele é uma pessoa alegre e sempre ajudava os outros. Ano passado, meu sobrinho foi atropelado e ficou internado por 20 dias. O Edson, que estava de licença do trabalho, revezava com a família no hospital”, contou Jorge Lúcio Batista, primo de consideração de Izidoro.
OS GRANDES ESTÃO LIVRES
Preso desde 99 na carceragem da Polinter, Edson chegou a ser ameaçado várias vezes pelos companheiros de cela, como também acusou o proprietário de uma das maiores funerárias do Rio de Janeiro pelas ameaças de morte. Uma vez detido, o auxiliar de enfermagem fez questão de deixar claro o envolvimento de outras pessoas no esquema. O próprio Edson se classificou como um peixe pequeno.
“Prenderam o peixinho, mas os grandes estão em liberdade. Tem gente de carrão, com casarão. E eu estou aqui, duro. Vou pagar pelo o que fiz, matei cinco pessoas, mas não participei de tráfico de órgãos, nem sei de nada sobre isso”, declarou em uma entrevista concedida um mês após a sua prisão.
Apesar de acusado da morte de 131 pessoas, em seu primeiro julgamento Edson Izidoro recebeu a sentença pelo assassinato de apenas quatro pacientes mortos no dia em que foi preso em flagrante. O Anjo da Morte, como ficou conhecido na época, alegou ter sido torturado pelos policiais para admitir a culpa, além de ser mal orientado pelos seus advogados na época da prisão. Porém, nada adiantou. A condenação somou 76 anos de prisão. No segundo julgamento, o auxiliar de enfermagem teve uma redução de sete anos da sua pena. O 3º Tribunal do Júri o condenou a 69 anos de reclusão em regime fechado sem direito a recorrer em liberdade.
Atualmente, Edson permanece nas celas da Polinter e, ao que tudo indica, o Anjo da Morte não abandonou a sua profissão — a de enfermeiro, bem entendido. Segundo policiais, o auxiliar de enfermagem é requisitado “sempre que um interno sente-se mal”. É ele quem presta os primeiros socorros na carceragem, a pedido dos próprios policiais e detentos. Além disso, Izidoro é considerado preso de bom comportamento e desfruta de “algumas regalias”. Por ser classificado como “faxina” — detento que presta serviço ou ajuda na prisão —, ele, que já dividiu espaço com outros 31 presos, ocupa uma cela com cerca de sete condenados, equipada com televisão, fogão, geladeira e colchões. Conforme informaram alguns policiais, esse tipo de tratamento é dispensado aos presos primários, de bom comportamento, sem nenhum tipo de ligação com facções criminosas.
Para o vereador do PT do B, João Cabral, presidente da CPI que na época apurou o caso, só mesmo a interferência e uma Comissão dos Direitos Humanos poderia tentar diminuir a pena de Edson Izidoro, mas o certo é que o assassino deve cumprir sua sentença e passar o resto da vida na prisão. “A diminuição da pena seria o fim da picada. No caso dele não pode se levar em consideração os direitos humanos. Afinal de contas, ele respeitou o direito de algum ser humano?”
A MÁFIA DAS FUNERÁRIAS
Mas esse caso serviu para tornar pública uma prática que até então era muito comum nos hospitais do Rio de Janeiro e possivelmente do restante do país: a máfia das funerárias. Com a prisão de Edson Izidoro Guimarães foi confirmado um esquema no Hospital Salgado Filho, onde as empresas funerárias agiam livremente pagando comissões a quem indicasse seus serviços. As investigações mostraram que o auxiliar de enfermagem chegava a lucrar entre cem e mil reais, dependendo do tipo de morte. As mortes naturais rendiam menos que aquelas produzidas por acidentes de trânsito. Estas últimas envolviam um esquema de seguro.
Súbito, um desdobramento: foi descoberto que a ação da máfia das funerárias não se restringia ao Rio de Janeiro. A prefeitura de São Paulo também admitiu que sua população estava sendo vítima da ação criminosa de agentes funerários, não ficando provado que a máfia paulista chegasse ao extremo das similares no estado onde Edson operava. Na capital paulista, as funerárias “somente ofereciam comissões aos funcionários de hospitais que indicassem seus serviços”, dizem.
Sob a alegação de responder à ação das máfias, o prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, assinou no dia 1º de janeiro de 2001 o decreto nº 19.399, estabelecendo um esquema de rodízio diário entre as funerárias em hospitais da rede pública e privada. Esse decreto, que recorda os procedimentos de licitação pública, instituiu o Regime de Plantão de Atendimento das Funerárias, onde somente uma única empresa tem permissão para atuar na unidade de saúde, sendo proibida qualquer outra forma de agenciamento ou venda de serviços funerários por uma outra — naquele dia. O serviço social dos hospitais fica encarregado de encaminhar os familiares da pessoa que faleceu à sala do Plantão, inibindo assim a livre circulação de agentes funerários nas dependências do hospital, alegam. A escala das funerárias e suas respectivas unidades de atuação são definidas pela Secretaria Municipal de Saúde. O órgão publica até o décimo quinto dia útil de cada mês uma relação com a escala de plantão das funerárias com suas respectivas unidades de saúde.
À estranha timidez do decreto é adicionado um sofisticado elenco de exigências para que uma empresa possa ser prestadora desse tipo de serviço nos hospitais. Para uma funerária “ser habilitada a prestar seus serviços, ela deve estar em dia com as suas obrigações fiscais municipais e aderir ao Código de Ética e Auto-regulamentação do Setor Funerário, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas e Diretores Funerários.”
AUSÊNCIA DE PROVAS
O vereador João Cabral lamenta o fato de não se ter obtido provas suficientes para incriminar outros envolvidos na máfia das funerárias e deixa uma dúvida, com sombras de certeza: “Edson Izidoro trabalhava sozinho?”
Segundo o vereador, todas as provas obtidas pelo trabalho da CPI foram enviadas para a Polícia Civil e anexadas ao processo para ser julgado. O envolvimento de outras pessoas no caso ficou claro, mas a ausência de provas que impediu outras acusações não se tornou no único obstáculo. João Cabral explicou que, como as reuniões da CPI e os depoimentos eram abertos ao público, foi muito difícil evitar que as testemunhas se sentissem acuadas enquanto depunham. “Teve gente que chegou a urinar de medo”, possivelmente sob os olhares de algum outro envolvido nos crimes.
A falta de provas e as ameaças dificultaram um melhor julgamento, mas o vereador João Cabral fez uma segunda conclusão lógica no decorrer das investigações: “O Edson Izidoro foi condenado somente porque a imprensa ficou em cima do caso, cobrando das autoridades explicações. Caso isso não ocorresse, tenho minhas dúvidas se o Edson seria condenado e pagasse pelos assassinatos”.
A prisão do auxiliar de enfermagem serviu para alertar um esquema, até então, muito comum nos hospitais do Brasil inteiro. As atividades terceirizadas do genocida, pelas quais ele alegou receber pagamentos, serviram para revelar a ação da máfia das funerárias (com atuação que não se limita ao Rio de Janeiro), aquela que investe na eliminação de pacientes para obter uma renda extra. Edson continua sustentando que é peixe pequeno no rentável negócio de humanos pré-abate; uma espécie de extrativismo da vida da gente pobre, o enorme contingente que busca um “hospital” somente quando as dores se tornam insuportáveis. E se deixa de respirar, o sistema apenas notifica o fato ao parente, porque nada de mais aconteceu.